“Vamos
dar um cheque em branco para aqueles que enxergam no Orçamento da União
apenas um caminho para fazer negócios e buscar recursos para bancar
despesas com eleições ou simplesmente aumentar o patrimônio pessoal”.
Estamos no plenário do Senado. Ocupa a tribuna o senador Jarbas
Vasconcelos (PMDB-PE).
Jarbas discursa na tarde de terça-feira (6), no período que antecede a
votação
da chamada ‘PEC do Orçamento Impositivo’, a proposta que obriga o
governo a pagar as emendas individuais que os congressistas enfiam
dentro do Orçamento da União. “Aprovar essa proposta de emenda à
Constituição vai contribuir para piorar ainda mais a imagem do
Congresso, que já está no fundo do poço”, diz Jarbas.
A sessão propiciou à audiência da TV Senado uma espécie de
strip-tease
institucional. Parlamentares de diferentes partidos —governistas e
oposicionistas— foram ao microfone para fazer um alerta: junto com as
emendas impositivas virá um aumento da taxa de corrupção.
Ao
defender seus pontos de vista, os opositores da proposta como que
reconheceram, cada um a seu modo, que parte do dinheiro do orçamento
federal sai pelo ladrão porque, no Legislativo, os ladrões entram no
orçamento. Jarbas falou de “cheque em branco”. Humberto Costa (PT-PE),
seu adversário na política pernambucana, usou expressão parecida:
“cheque visado”.
“Estamos cansados de ver como o uso da emenda
parlamentar tem sido fonte de escândalos os mais variados”, realçou
Humberto. “Anões do Orçamento, máfia dos sanguessugas e tantos outros
casos que têm origem na relação que passa a se estabelecer entre
empresa, prefeitura e parlamentar.” Ecoando Jarbas, Humberto soou
categórico: “Estamos cometendo um grande equívoco.”
Já aprovada na
Câmara, a PEC das emendas teve como relator no Senado o líder do
governo Eduardo Braga (PMDB-AM). Ele alterou o texto original. Ajustou-o
à vontade do Planalto. Cada um dos 513 deputados e 81 senadores poderá
apresentar até R$ 13,8 milhões em emendas por ano, o equivalente a 1,2%
da receita corrente líquida da União. Escrevendo com a caligrafia que
Dilma Rousseff autorizou, o relator anotou que 50% desse valor terá de
ser aplicado em saúde. “Dos males o menor”, disse Humberto Costa,
ex-ministro da Saúde de Lula.
Menos benevolente, o senador Pedro
Taques (PDT-MT) foi severo com o relator. Para ele, foi por esperteza
que Eduardo Braga enfiou a verba da saúde, uma demanda das ruas, no
balaio das emendas. “A questão da aplicação em saúde passou a
monopolizar o discurso governista, as falas dos parlamentares e a
cobertura da imprensa”, constatou Taques.
O barulho em torno da
saúde, prosseguiu o senador, serviu para abafar outro ruído: “Foi para
que ninguém notasse o fato de que, bem agachado, por trás do tema dos
15% para a saúde, passa uma boiada.” Num “pedido de destaque”, Taques
sugeriu que a elevação das verbas da saúde fosse apartada do resto da
proposta. Com isso, os senadores poderiam aprovar esse pedaço do texto e
rejeitar todo o resto.
Ex-procurador da República, Taques conhece
a encrenca das emendas por dentro. Participou da apuração de casos de
corrupção que tiveram origem nessas emendas. Ele desmontou a tese
segundo a qual as emendas impositivas levariam à alforria dos
congressistas, que não teriam mais de se sujeitar às chantagens do
Planalto.
“Essas mudanças não garantem absolutamente nada”, disse
Taques. Submetidas à redação construída a quatro mãos por Eduardo Baga e
a equipe de Dilma, as emendas de deputados e senadores serão, no dizer
de Taques, “pseudoimpositivas”. Como assim? “O texto faz tantas
ressalvas, que permitem ao Executivo bloquear qualquer programação que
não lhe interesse executar, sob o pretexto de ‘impedimento técnico’.
Cabe tudo sob esse pretexto, até uma jamanta.”
De resto, disse
Taques, permanecem “intactas as possibilidades de barganhas e negociatas
para comprar votos de congressistas em troca de benesses políticas”.
Embora seja um senador de primeiro mandato, Taques incluiu-se entre o
que têm ciência plena das mumunhas que permeiam a relação do Executivo
com o Legislativo. “Nós todos conhecemos”, disse.
No “mercado
persa da formação de coalisões”, prosseguiu Taques, “a PEC que estamos
votando só afeta a menor das barraquinhas”. As outras tendas permanecem
abertas. “Emendas individuais são só uma parte das emendas
orçamentárias. O Executivo coloca na mesa para comprar sua maioria,
todos sabemos. Joga também com a troca de cargos. Não só de ministros,
mas de dirigentes e de chefes espalhados por toda a máquina
governamental.”
Nas pegadas de Taques, suprema ironia, escalou a
tribuna o senador Jader Barbalho (PMDB-PA). Os dois são velhos
conhecidos. Como procurador, Taques participou da apuração de ‘
barbalhidades’
cometidas na Sudam durante o governo FHC. Mercê dessas apurações, Jader
chegou a passar uma noite na cadeia. Pois a encrenca do orçamento
impositivo aproximou-o de seu ex-algoz.
No dizer de Jader, “o
Executivo chantageia o Parlamento. Quem vota com o Planalto tem toda a
chance de ter liberadas suas emendas. Quem não vota com o governo tem
imensas dificuldades”. Como duvida da eficácia da da PEC que torna
impositivas as emendas, Jader anunciou que votaria contra.
Vários
senadores evocaram escândalos antigos para se opor à PEC. Líder do PSDB,
Aloysio Nunes Ferreira (SP) demonstrou que não é preciso olhar para o
retrovisor para enxergar os riscos. “Temos fatos atuais à nossa
disposição. Há dois deputados distritais, aqui no Distrito Federal. Um
já foi cassado, o outro está sob ameaça de cassação por venda de
emendas. Em São Paulo, está em curso uma investigação sobre a chamada
‘máfia do asfalto’. Apura-se exatamente a comercialização de emendas
parlamentares. Começou em São Paulo. Mas já estende para o âmbito
federal.”
A despeito da pregação em contrário, a ‘PEC do Orçamento
Impositivo’ foi aprovada em primeiro turno pelos senadores.
Materializou-se no painel eletrônico uma maioria maiúscula. Dos 81
senadores, votaram 71. Contraram-se 62 votos a favor. Apenas 9 votaram
contra. Não chegam a encher os dedos de duas mãos.
Como se trata
de uma emenda constitucional, será necessário realizar uma segunda
votação. O que deve ocorrer na próxima semana. Modificado, o texto terá
de retornar à Câmara. Os deputados podem mantê-lo como está ou, por meio
de emendas supressivas, aproximá-lo da versão original.
Será
preciso aguardar algum tempo para verificar qual será o impacto da
novidade no noticiário policial. Mas quem assistiu à sessão do Senado
não tem razões para ser otimista. Potencializou-se no imaginário do
telespectador a suspeita de que, longe do plenário, escondida nos porões
do prédio de Oscar Niemeyer, deve mesmo haver uma usina de malandragens
e perfídias.